A Performance Como Ação Midiática



Introdução da dissertação de mestrado

A performance como ação midiática: os (não) limites entre arte e comunicação

 que pode ser lida na íntegra na janela incorporada no final desse post.

por Ludmila Castanheira



O Festival de Apartamento nos levou a algumas reflexões sobre o estado atual da performance no Brasil, e à produção, difusão e recepção de trabalhos nessa linguagem. Entre os anos de 2009 e 2011, o tema acabou tomando espaço nas pesquisas de mestrado de dois de seus organizadores.
Partilhá-las é uma forma de expor as convergências e divergências de pensamento acerca de um objeto vivo e ainda em transformação. Abaixo, a introdução de uma das pesquisas, com link para a versão integral.


O tema de minha pesquisa de mestrado é a performance tratada como meio de comunicação. Partimos da constatação de que determinados circuitos artísticos precisam se valer de algumas brechas (comunicacionais, mercadológicas e curatoriais) que coexistem com um modo de organização hegemônico para se sustentar. Neste exercício, estes circuitos acabam por estabelecer, eles mesmos, os canais necessários à sua fruição.

Este comportamento nas artes, além de implicar em conseqüências políticas, parece dividir, senão deslocar, a importância da obra de seu resultado para o percurso, troca e alterações às quais está sujeita em sua veiculação no meio.

As manifestações que realizam seus próprios canais de veiculação e sustentabilidade não são sempre artísticas. Desde já, é preciso esclarecer que nosso discurso se firma na delimitação de performatividade[1] que, a nosso ver, apresentam este caráter e, algumas vezes, escapam do campo artístico.

O conjunto de práticas compreendidas como artes presenciais (e que aqui estamos considerando dança, performance e teatro) têm a propriedade de acontecer em negociação com público, havendo maior ou menor abertura para sua entrada. Porém, por menor que sejam as separações entre obra e público, não se pode repeti-la sem que sem que haja modificações.

Ao menos nas primeiras experiências da performance, o apelo e destaque ao “irrepetível”, entre outras propostas de experimentação, buscavam compreendê-la como acontecimento[2]: ação que faz algo (materiais, tempo, espaço, público, performer) passar de um estado (material, de humor) a outro[3].

Neste viés, a performance se apropriou das várias contribuições das vanguardas, bem como retomou antigos rituais. As informações advindas da própria arte, do cotidiano e da biografia do artista foram processadas e assim traçou-se o que viria a ser, ainda hoje, uma arte em construção.

Esta disposição provocou mudanças nos parâmetros comumente utilizados para situar e caracterizar a arte: o modo de fazer, os locais[4] de sua realização, a mensura do valor da obra, não são realizados a contento senão caso a caso, de maneira relativa.

São vários os aspectos que contribuem para a “indisciplinaridade[5]” da performance no sentido da ampliação das zonas de contágio. Dentre eles, o fato de ela ser uma arte prioritariamente corporal[6]. E neste ponto, é necessário dizer com que entendimento de corpo esta pesquisa lida.

A teoria corpomídia de Katz e Greiner (2003, 2004, 2005) traz uma importante contribuição para o nosso enfoque da performance como meio de comunicação. Já em seu título, há uma discussão acerca da diferença entre as mídias comuns (digitais, impressas, televisivas) para a mídia corpo.

Ao invés de grafar-se corpo e mídia de maneira separada, a opção por dizer corpomídia numa só palavra ressalta, justamente, que o corpo não é mídia do mesmo modo que as mídias comuns. As mídias comuns não se alteram devido à informação processada aí (uma TV não muda de estado de acordo com o teor da notícia), enquanto o corpo é mídia pela possibilidade de trazer em si as alterações produzidas (e que produz) pelo (no) meio onde se insere[7].

Por esta razão, ao tratarmos a performance como meio de comunicação, nos parece pertinente fazê-lo em duas esferas: uma do âmbito do registro e divulgação das ações performativas em questão, e outra que diz respeito ao caráter comunicativo do corpo nas performances selecionadas.

A abordagem do objeto artístico como transitório e da arte como não tendo mais o local de sua concretização, entra em acordo com uma concepção de corpo também sem delimitações precisas. Um corpo que circula entre situações de representação artística (teatral, de dança) ao mesmo tempo em que reinventa ações que compreendemos como cotidianas, esmaece estes limites sem se apoiar inteiramente de todo em nenhum dos aparatos.

Ainda assim, talvez como uma tentativa de oferecer modos mais pragmáticos de lidar com a arte, observa-se um determinado modo de fazê-la, apreciá-la e difundi-la. Mesmo entre artistas, elegem-se obras que são de "bom tom" prestigiar. Este procedimento resvala, muitas vezes, também para a imprensa na hora de optar pelos eventos que "vale a pena" cobrir e criticar.

Nossa motivação ao realizar esta pesquisa é destacar na pretensão de um modelo central e totalizador, que conta com diversos canais de manutenção, sua ineficácia em alcançar a homogeneidade. Pretendemos sublinhar uma visão que supõe outras formas de fruição da arte e do pensamento crítico.

No interior de um sistema baseado em resoluções que lidam com a arte de maneira pragmática, “otimizada”, com características mais próximas de um modelo industrial[8] que artístico, surgem ações que o desestabilizam sem afrontá-lo. Elas coabitam com ele e dispensam o aval de "autoridades" da cultura para validar a sua existência. Há iniciativas em diversos lugares do mundo, burlando o estabelecido. Estas iniciativas não buscam apoio ou retorno financeiro de forma direta, apresentando-se como contrárias à maioria das motivações que, num regime capitalista, vem se tornando cada vez mais naturais.

Outro exemplo analisado é o dos Festivais de Apartamento, que ilustra o deslocamento de algumas manifestações do campo das artes para o campo comunicacional. Estes são exemplos de performances que se organizam principalmente através da internet. Sua premissa é realizar-se nas casas de artistas que estejam dispostos a abrigá-los, e acontecem sem que haja curadoria: a seleção dos trabalhos é feita segundo a ordem de inscritos e de acordo com o número de trabalhos comportados pelo local de sua realização.

A fim de estabelecer um recorte condizente com a dimensão de uma pesquisa de mestrado, optei por estudar alguns trabalhos de Flávio Rabelo, por identificar na série “Estranho, um cara comum”, um exemplo deste tipo de organização não institucionalizada. Nesta série, o performer instala-se sob marquises de igrejas geralmente habitadas por moradores de rua, denominando a si e a eles como "estranhos". Através de um jogo de perguntas e respostas (não necessariamente verbais) travado com os moradores, o artista propõe algumas inversões acerca dos elementos que os separam de nós, ditos cidadãos comuns.

Os exemplos acima mencionados são amostras de um comportamento que não deve ser classificado exclusivamente com ações da performance (o gênero artístico), mas como agenciadores de novas redes dentro da rede mercado/arte/mídia, congregando artistas e público das mais diversas formações e objetivos, conectados, entretanto, por algum propósito momentâneo, quase sempre gerador de uma experiência de pico, onde o controle sobre a vida se suspende por alguns momentos[9].

Este tipo de rede acaba por configurar-se como um modo de resistência possível numa época em que o poder continua se instaurando de maneira imperial[10]. As redes de artistas, utilizadas com este objetivo, configuram-se como importante agente na formulação de um contexto pluralista.


[1] A noção de ação performativa é mais ampla que a de performance artística: todos nós performamos mais do que sabemos performar... a vida cotidiana, religiosa ou artística consiste em grande parte em rotinas, hábitos e ritualizações e de recombinação de comportamentos previamente exercidos (Shechner, sem ano, sem página).

[2] Em distintas bibliografias, situa-se o happening (acontecimento) em oposição à performance, sendo o primeiro uma versão menos elaborada ou mais espontânea da segunda. O happening, para alguns autores, teria sido a forma de experimentação que, decantada, daria lugar à performance, resultado da maturação da obra e do artista. Thaíse Nardim, em “Allan Kaprow, performance e colaboração: estratégias para abraçar a vida como potência criativa” (2009), oferece uma interessante visão sobre o happening como forma artística autônoma e organizada.

[3] O performer é um operador de transformações entre inumeráveis códigos móveis e um conjunto de mensagens compostas por signos móveis baseados nestes paradigmas. A atividade de artistas da performance resulta, conseqüentemente, numa verdadeira catálise de elementos, numa transformação de códigos lábeis em mensagens lábeis (GLUSBERG, 2003, p.78).

[4] Ver anexo I, entrevista com Marcos Gallon, curador da Galeria Vermelho, a primeira galeria brasileira com um espaço dedicado à performance art.

[5] Como detectou Muniz Sodré em Antropológica do Espelho (2002), quando a estratégia de pesquisa é da ordem da radicalidade do trans (referindo-se às famosas redes transdisciplinares), acaba virando “indisciplinar”. Um campo que é “propriamente um atrator ou ‘buraco negro’ para onde se projetam as substâncias originais da História” (GREINER, 2005, p. 11).

[6] Qualquer que seja a maneira pela qual somos levados a remanejar (ou espremer para extrair a substância) a noção de performance, encontraremos sempre aí um elemento irredutível, a idéia de presença de um corpo. Recorrer à noção de performance implica então a necessidade de reintroduzir a consideração do corpo no estudo da obra. Ora, o corpo (que existe enquanto relação, a cada momento recriado, do eu ao ser físico) é da ordem do indizivelmente pessoal. A noção de performance (quando os elementos se cristalizam em torno da lembrança de uma presença) perde toda pertinência desde que a façamos abarcar outra coisa que não o comprometimento empírico, agora e neste momento, da integridade de um ser particular numa situação dada (ZUMTHOR, 2000, pp.45-46).

[7] O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é um resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com essa noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação (GREINER, 2005, p.131)

[8] Eugênio Bucci, em “A imprensa e o dever de liberdade (2009) alerta para o modo amalgamado como se dão o jornalismo e a indústria do entretenimento. O jornalista aponta ainda as consequências dessa amálgama para a liberdade de cobertura dos eventos culturais. Este é um ponto a que retornaremos.

[9] A idéia de criar uma zona autônoma em que se suspenda, mesmo que momentaneamente, o controle sobre a vida, que fuja à égide do biopoder é uma forma de resistência que tem sido largamente utilizada. A desordem não prevista, a indisciplina dos corpos, abala as estruturas da sociedade de controle. ‘Os corpos estão se tornando por demais indisciplinados’, anota George Monbiot. A oposição, tal como proposta, exige uma renovação constante de táticas e ações já que o capitalismo atual apresenta, como uma de suas características mais latente, a capacidade de incorporação de suas partes dissidentes (OLIVEIRA, 2007, p.34).

[10] No Império já não existe mais lado de fora, o globo foi subsumido em sua lógica. O poder imperial é distribuído em redes, por meio de mecanismos móveis e articulados de controle. O biopoder descreve aspectos centrais do conceito de Império. Caracteriza-se fundamentalmente pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites. O Império difere do imperialismo que exercia o domínio sobre o território, sobre suas riquezas e sua administração a partir de um centro territorial de poder. O Império constitui-se não com base na força e sim na sua capacidade de mostrar a força como algo a serviço do direito e da paz. O objeto do seu governo é a vida social como um todo, e assim o Império se apresenta como forma paradigmática de biopoder (Ibid., p.46)


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