Sobre o Festival de Apartamento



Sobre o Festival de Apartamento

por Thaíse Nardim


O Festival de Apartamento surgiu sem pretensões. Pessoas envolvidas com e interessadas em artes, reunidas na casa de um deles. Uma festa, para celebrar e compartilhar as ideias que não encontravam outro espaço. Apropriou-se do nome utilizado pelos neoístas, os mesmos que, nos anos 80, faziam seu elogio ao plágio. Apropriar-se e, quem sabe, ser apropriado. Sem dar aos encontros o ar de seriedade que, de maneira geral, ronda as exposições e encontros da comunidade artística. Sem aura. Sem glamour. Sem dinheiro. Apenas “façamos”.

Aos poucos, foi ganhando a cara que tem hoje – que pode ser tão provisória e efêmera quanto o acontecimento de um festival – ou não. Um simpatizante coloca sua residência à disposição – por ventura ou ironia, nunca até hoje um apartamento de fato. Uma chamada é lançada, utilizando como instrumento exclusivamente a internet e o boca-a-boca que ela pode promover. Artistas ou não-artistas (ou qualquer que seja o título que quiserem dar-se essas pessoas) por livre e espontânea vontade de trocar, sabendo tratar-se de um evento que não os subsidiará em nada - pois também em nada é subsidiado – enviam aos festivos organizadores suas propostas. Não existe eleição curatorial prévia: uma vez submetido, o projeto está inscrito. Chegado o dia, todos se encontram, oferecem aos demais presentes a realização de suas propostas, celebram-se os encontros, novas redes começam a se formar. E acaba. E pode ser que, um dia, aconteça novamente. Ou não.

Para nós, que assumimos o título de organizadores mais por acidente que por conceito (ocorre-me agora: seríamos agitadores? Oportunizadores? Juntadores de gente?), foi surpreendente a maneira pela qual o Festival veio, nos últimos dois anos, ganhando proporção, crescendo em número de fazedores de arte adeptos e simpatizantes em geral. Alguns são fiéis e, dentro de suas possibilidades financeiras, acabam voltando. Tornam-se interlocutores, parceiros, alguém com quem se pode contar. Eis aí o que mais gostamos de conquistar com essas realizações: amigos.

Costumo dizer que um Festival de Apartamento realiza-se com cerca de vinte reais de cada um dos organizadores (sessenta, portanto). Há também, claro, o investimento que o performer faz em seu trabalho e para seu deslocamento. Mais cinco ou dez reais pra faxina – afinal, alguém tem que morar ali amanhã – e para o segurança – nunca se sabe. E, há duas edições, assumimos a caixinha de doações anônimas – com a caixinha, talvez possa começar a dizer que os meus vinte reais tornam-se uns dez, quinze.

Nascido sem pretensões, crescido também sem elas. Entre os organizadores, em seu íntimo, motivações de outra ordem podem aparecer. Eu, por exemplo, acredito nesse formato como uma forma de promover a descentralização dos meios produtivos da arte da performance. Isto significa que, se a vizinha da residência cedida resolve participar da festividade, vê alguns trabalhos que acontecem ali, na cozinha, no quintal, no banheiro, ela poderá de alguma forma saber que também ela, se o desejar, pode concretizar em performance aquela inquietação que a vem cutucando há algum tempo. Creio também no Festival como um manifesto contra os modos de subvenção à produção artística na contemporaneidade, ou à relação dos artistas com essas formas, que condicionam por vezes a existência de sua obra à cessão do dinheiro público, cessão essa insanamente determinada por critérios que, por sua vez, determinam as formas de arte que serão produzidas, num ciclo deveras vicioso – uma bolha, que uma hora ou outra há de explodir por sua própria natureza. Entretanto, não faço desses meus olhares íntimos bandeiras do Festival. Não existe, nele, uma plataforma política a ser defendida. Existe, evidentemente, o inegável caráter político que qualquer posicionamento em sociedade assume. Mas não pretendemos forçar sua leitura, sua interpretação. Queremos interlocutores - e amigos.

Para chegar a esse objetivo, de nossa parte buscamos ao máximo receber bem os inscritos, oferecendo a eles tudo que nos é possível – um cantinho, mesmo que singelo, para dormir, a criação de uma rede de caronas solidárias, um abraço, um chuveiro, amarrar um barbante em algum lugar. Não somos indefectíveis e - inclusive, somos seres humanos, com nossas peculiaridades, nossos afetos.

Alguns irão dizer que um Festival de Apartamento não se configura como um ambiente propício para a realização de trabalhos performáticos. Eu diria que existem trabalhos e trabalhos. Certamente, creio que Marina Abramovic não acharia um Festival o melhor lugar do mundo para a sua obra “The artist is presente”, recentemente realizada no MOMA (mas trata-se de uma suposição afinal, estando ali o trabalho tornar-se-ia em outra coisa. Divago). Mas Marina, ao acessar o blog do Festival, poderia ter acesso à descrição de tudo aquilo que caracteriza um Festival de Apartamento: é uma festa; não sabemos quem vem, e quantos serão os que vêm; as pessoas vão e vem o tempo todo; a ordem efetiva da realização dos trabalhos é organizada no próprio momento em que as coisas acontecem, buscando respeitar necessidades de última hora dos performers; alguns trabalhos podem ser apresentados simultaneamente – você será consultado sobre essa possibilidade; nada ou ninguém impedirá alguém de emitir sua opinião no exato momento em que ela lhe vier à cabeça (exceto o bom senso do próprio alguém – e, se houver agressividade, lá está nosso segurança); não existe nenhum controle sobre o registro das obras (isso ainda existe em algum lugar?); apesar disso, temos nossos registros oficiais, e solicitamos a aprovação dos performers antes de divulga-las em nosso blog; compartilhamos todos os registros oficiais das obras com os respectivos artistas. E assim por diante.

Isso. Isso faz um Festival de Apartamento. Mais eu, o Ro e a Lud. E os anfitriões. E todo mundo. Não é uma ideia inédita (como já adiantei). É muito fácil de fazer, e temos visto iniciativas similares multiplicarem-se pelo Brasil. Muitas vezes, os organizadores vêm até nós dizendo terem se inspirado no Festival e nos convidam para uma troca. Ficamos felizes, menos por sermos reconhecidos como referência do que pela possibilidade de conhecer gente nova – o que às vezes acaba não sendo possível pelas nossas próprias condições financeiras. Mas nós gostamos de performance. Gostamos que sejam feitas, várias, muitas - e até mesmo que sua prática seja banalizada. E gostamos, principalmente, que as pessoas façam amigos.

Um comentário:

Rodrigo Gallo disse...

Foi lindo thaise

foi lindo
beijos